A música e as palavras fazem parte de mim.
Quero ouvir, dividir e respirar música...
e as palavras que dizem, quero-as como pinceladas alegres ou amargas, luminosas ou escuras, quero-as verdadeiras...
Jorge Luís Borges escreve dum modo que me tira todo ensejo de tentar rabiscar minhas divagações, fico seco...
Hoje reli pela milésima vez, poemas e trechos de um dos quatro volumes da sua antologia, que são meus livros de cabeceira e me pasmo sempre com tanta sensibilidade, criatividade, erudição. Todos atributos de grandeza se aplicam à obra deste génio do pensamento e das letras
Num deserto lugar do Irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo chão é de terra e tem a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.
" Os filhos de Maputo ", é como se chama esta pintura do meu grande amigo, irmão e fabuloso pintor Luís Gomes.
Esta pintura é um olhar originalíssimo para a temática africana, simplesmente fantástica a vista do céu da multiplicidade de cores das capulanas, das vozes femininas , do povo em movimento ...
O sol que não brilhava e muito menos aquecia este verão africano, rasgou finalmente as nuvens que o aprisionavam e pulverizou o frio doentio que tudo entristecia e a vida sorri de novo...
As mulheres como que enfeitiçadas pelo astro rei , como uma onda se espraiando e entoando cânticos ancestrais caminham em direcção ao futuro prometido, sonham pomares maduros e escolas risonhas , sonham machambas fartas , e seguem atrás das pinceladas do Luís...
A espera do futuro
O louco de tronco nu no cruzamento duma das avenidas mais movimentadas de Maputo, caminha em círculos, agitado...
No meio do tráfego da hora de ponta, de pedra em riste faz as pessoas nos passeios refrearem o seu caminhar apressado e ficarem sideradas perante tal espectáculo...
Alça a mão e dispara para um carro que vem em sua direcção e atinge o vidro, estilhaçando-o !
" Ahhhh...". - um clamor de espanto e despeito sobrepõem-se ao silêncio que se seguiu ao som da pancada seca da pedra contra o vidro.
Nada mais se passou, o carro seguiu com o motorista em estado de choque, sem nada poder fazer, a loucura é isenta de julgamentos, é um estado puro .
O louco em frenesim foi rodopiando tal qual um ciclone e se desvaneceu na multidão , vai-se lá saber o porquê da sua fúria...
existem palavras para dizer os sentires do peito mas melhor é que fiquem no silêncio, que deixem as notas musicais escreverem o sentimento...
Jazz
Jazz
num solilóquio azul, borboletando por dentro a música pinta divagações e improvisos em telas irrepetíveis...
Jazz
Jazz
o lamento dos algodoais, a embriaguez nos bares de New Orleans , o chocalhar das correntes nos tornozelos, a voz dopada junto com o ronronar do saxofone e a guitarra dizendo seriamente da alma
Jazz
Jazz
misteriosa linguagem esta, feita a cada momento, recriando-se sempre a volta dum mantra harmonioso que nos emociona e vicia, nunca se repetindo
Para chegar ao Muquifo ele tem de descer umas escadas íngremes sob a sombra duma mangueira portentosa.
Abre o cadeado da grade de ferro, roda a chave da porta e o seu pedaço de intimidade lhe dá as boas vindas.
O melhor dos mais lindos palácios está ali, logo que a porta se fecha a tranquilidade e a segurança correm, saltitam, pulam para o seu colo felizes por o receberem ...
A geleira sorri-lhe, o pacote de waffers de baunilha a meio ficou na mesa , repara que está tudo como gosta e como deixou ontem quando saiu para vadiar...
A mochila com o lap fica logo ali no sofá purpura da cozinha, já na casa de banho abre as torneiras e tempera um banho morno...
A caminho do quarto vai tirando a t-shirt , acende a luz, flita o quarto com o Baygon para garantir que mosquito algum lhe perturbe o sono e fica nu por dentro e por fora.
Apetece-lhe ouvir Alborosie e começa a cantarolar Dutty Road:
dem walk on dutty road, jah full a garbage bin and cockroach, jah
As luzes do Muquifo iluminam esta actividade registando para a posteridade os movimentos do resgatado, a calma e o prazer contidos em cada gesto rotineiro transformam a cena num bailado em slow motion.
O banho vai até esgotar a água quente, nesse banho ele simplesmente deixa de estar e se concentra no prazer da massagem , como mãos oleosas e quentes a água o relaxa mais ainda...
Descalço e de toalha à cintura põe água a ferver para cozinhar um spaggheti liga depois o lap ao sistema de som e Precious enche o espaço:
precious precious she's wining on me(lawd a mercy) precious rub a dub mi girl till da morning precious precious she's wining on me
Como as coisas simples podem ser tão prazeirosas e a convivência com ele próprio tão reconfortante!!!
Depois de ter percorrido o deserto das almas penadas montado no faustoso camelo alado do acreditar, pensava ele conseguir chegar a terra do entendimento, descobre agora no ocaso da vida que tal nunca poderia ter acontecido...
Percebe que não se pode chegar a lado nenhum se não conseguirmos primeiro resgatar o amor próprio.
O respeito em todos os sentidos da palavra; a afirmação da nossa essência, da nossa personalidade sem dúvidas. Entendeu finalmente que não se pode ser o que os outros gostariam que fossemos, que não podemos viver em função da vida dos outros . Ele acredita que sendo assim, verdadeiro e seguro de si que tudo ainda é possível. O amor, a paz e até a felicidade poderão ainda acontecer ....
O Muquifo fica na entrada da zona esquecida da cidade das acácias, fica ali onde a vida fervilha e as pessoas são feitas de luta e determinação, onde não existe espaço para lamentos, onde se cantam todas as odes à vida, todos os dias ...
A voz grossa de Alborosie sobe por entre os ramos da mangueira e consegue chegar ao último andar do prédio ao lado...
Ele dança ao som do reggae, o molho a bolonhesa já está quente, o resto do pacote de parmesão ralado ainda chega para esta refeição...
Enquanto dança de toalha a cintura agradece aos céus por ter sobrevivido, ele sente e sabe que nunca mais será infeliz, que nunca mais ninguém lhe fará chorar....
Na rua uma energia positiva vibra, um grupo de jovens na esquina conversa animadamente, do outro lado da rua na barraca da mãmã Isabel um trio sentado no passeio bebe e fala alto e as gargalhadas animam o fim do domingo...
Pardais voando no meio do cenário, carros circulando, muitos sons misturados, apetece estar aqui...
Maputo é bela, ela é especial e respira de modo totalmente diferente, não se compara a qualquer outro lugar, ela é ingénua e sorridente e todo mal que lhe estejam a fazer , nunca lhe tocará realmente, ela está noutro level...
O amor e paixão que ela desperta, a harmonia das ruas e das gentes, libertam um perfume de cidade mágica, cidade do impossível, cidade do óbvio, do ingénuo de novo....
Esta cidade que vaga em filosofias e estudos criativos tentando encontrar o cerne , querendo desabrochar, a contradição genuína que faz passar de 33º C para 22ºC num piscar de olhos, o que se diz nem sempre ou quase nunca se faz, celebra-se o dia a dia e o fim de semana é uma festa, festeja-se como soi festejar-se em ocasiões especiais...
Maputo o jardim centenário , a cidade de traçado inteligente vai ressurgindo do coma, do desmazelo e se instruindo, vestindo-se melhor, sem pressa , lentamente, com seus filhos alheados , enfeitiçados pelos poderes da bela, pela magia apaziguadora que ela irradia, eles vão inventando uma cidade de novo a se iluminar....
Maputo blues, sonho contigo, nos meus sonhos estou sempre aqui, nas recordações, em todas as projecções vividas e por viver... Maputo, meu sangue, meu amor incondicional, o estar em casa, sensação única ....
Último álbum do mestre dos Dire Straits, como o conhaque, maduro, apurado ....
Espelho meu, quem é a mulher mais indesejada do mundo?
O espelho responde:
- Não é você loira, é sim aquela morena toda bem feita, de corpo escultural mas com uma cabeça de minhoca...
Neste mundo de gente pensante ela não vai nunca conseguir encontrar o amor, apenas será devorada e não sobrará nada para além desse corpo todo cansado e desgastado...
Mesmo assim ela se desanca e se descabela porque o espelho reflecte o exterior que ela não aceita, que ela não quer para si e triste e arrasada ela se fecha na sua concha e fica bebendo cachaça atrás de cachaça...
Sentada na areia da praia ela esconjura o mundo, ela grita e reclama dos céus e só o marulhar e o luar lhe respondem com ternura muda, com o calor das não palavras...
Os pirilampos se aproximam e a ajudam a se levantar e iluminada ela volta para seu castelo de sombras...
As lágrimas lhe toldam a visão e não consegue encontrar a morada.
- Onde está a minha guarida?
- Esta não é , mas...
No lugar de sua casa iluminada está uma carruagem feita de chocolate e ao se aproximar a porta abre-se e um pajem belamente vestido lhe faz uma vénia e a convida a entrar.
Nervosa limpa com as costas da mão a face ainda molhada e receosa , querendo e não querendo se foi aproximando.
Sentada e com o coração batendo descomandado vê sair duma portinhola secreta um teclado e a janela á sua frente se transformar num monitor incrível, tridimensional, touch screen, etc.
Um génio vai saindo tipo fumaça e se materializando bem ao seu lado, enorme e bem cheiroso, cheirando aos incensos do Oriente das mil e uma noites.
- Loira, vou lhe fazer 3 perguntas e você vai ter de responder certo senão não sairá daqui e voltará para seu mundo amargo e sem esperança.
- Se acertar vou levar você para a terra do nunca, para a terra do jamais se estar triste.
- Aceita ?
Enchendo o peito até quase explodir ela depois descomprime e o ar sai de seus pulmões com tanta força e libertando um bafo a cachaça que o génio torce seu nariz e seus cabelos negros de azeviche esvoaçam cintilantes como só o ébano perfeito dos mágicos o consegue.
Apontando o dedo para o monitor , magicamente surge a primeira pergunta escrita em 10 dimensões, nunca antes se tinha visto tanta tecnologia mágica !!!
-O que é mais importante, o que você quer para sua vida ou o que a vida quer para você?
A loira sente o ar lhe faltando e a cabeça rodopiando e responde:
- O que eu quero para mim sem dúvida !!!
O sinal de certo surge piscando a verde no écran e o cantar de rouxinóis acompanham o banho de confetti de ouro real que vai caindo do tecto.
A segunda pergunta não demorou.
- Devemos desistir de perseguir nossos anseios, nossos sonhos, mesmo que tudo demonstre ser irrealizável e devemos aceitar os factos que parecem intransponíveis?
Ah, a loira não acha que deva perseguir sonhos ou mesmo acreditar que tudo pode acontecer mas como ela tem um amigo que passa o tempo lhe atazanando com o contrário se resolve sem hesitar.
- Nunca, jamais desistir !!!!
Um arco íris atravessa o céu sobre a carruagem e gazelas saltam por cima dos cavalos num espectáculo surreal, vozes angelicais cantam e afirmam:
" Acertou ! Acertou!
Só falta mais uma ! Só falta mais uma !
A loira procura no bolso da saia rodada a garrafinha de cachaça e se assusta pois lá dentro em vez da garrafa tem sim um sapo gordinho sorrindo para ela
O génio se enrola numa espiral de fumo e volta para dentro do monitor e uma voz portentosa lhe lança a última pergunta:
- Loira, você acredita em contos de fada?
Aí a porca torce o rabo, ela se levanta e já vai para sair, deitando fogo pelas narinas, pensa ela que está sendo alvo duma armação da televisão.
Abre a porta e se assusta porque está nos céus e as luzes da cidade estão pequeninas lá em baixo e se senta de novo rapidamente.
- Não, não acredito !!!
Grita rouca e consciente de que tudo vai terminar logo, que tudo não passa de uma alucinação etílica.
Um silencio gelado se instala e a carruagem se transforma num táxi velho e a caminho de sua casa que já se avista a alguns metros.
Paga a viagem e caminhando sem alento procura a chave que está pendurada num coração vermelho e não encontra, vira a carteira do avesso e nada....
- Perdi a chave e agora?
Desanimada empurra a porta e para seu espanto ela se abre sem ruído, sem o chiar nostálgico e tão conhecido do desconsolo de todos os dias...
Entra e repara que apesar de não ter ligado as luzes algo luminoso vem do seu quarto; em cima da cama a chave !!!
...mas no lugar do coração um papiro de ouro brilha com vida própria.
Senta-se na berminha da cama, receosa e sem perceber nada.
O papiro se começa a mover e um sábio, um ser feito de pureza extrema se materializa, vestido de tecidos nunca vistos.
Ele pega suas mãos com doçura e diz:
Moça, você respondeu tudo certo e como tal a vida não vai fazer você esperar mais, a vida não vai desapontar mais você, você vai ser amada e vai amar porque daqui para a frente o nunca e o jamais não existirão mais em sua vida
Não foi logo que esta declaração se tornou real mas a loira deixou de acreditar que com ela o amor não aconteceria jamais.
Passado uns tempos surgiu um individuo de carne e osso, belo e com cabelo preto como ébano, era fã de suas palavras e de suas poesias e ela simplesmente arrumou o computador, só o ligava para saber de seus amigos.
O tempo era ocupado com a vida real, com a amizade e o amor, com o companheirismo e a alma acalmou e sossegou.
O bass dando o beat e o individuo seguindo a passo e compasso
gin e manga juice escorrendo para as meninges sedentas
o feriado deixou um trilho de musicas pela cidade e elas ficaram ecoando , ecoando...
na boca da toca o narizito empinado fareja o sentido das coisas
uma pontada nas costas lhe avisa da perenidade de estar
da penumbra olha o verde das folhas da majestosa mangueira em flor
os sons planam ao nível do tecto, ele está submerso
a terra o rodeia, os grilos grilam a meio tom, trinam...
na cave o solilóquio vai profundo e a escuridão se aproxima sorrateiramente...
Faça-se luz e a musica se pronuncie....
Lá onde os sonhos ficaram pendurados em varais, se abram as cortinas e deixem a noite ser plateia ...
Tambores tocando , os arautos das vidas perdidas se fazendo ouvir em harmonias complicadas, desenhando mapas e notas musicais nas histórias infames dos desconsolados.
Tacteando , inalando aromas, olhando longamente acaba o insone provando o sabor salgado das coisas estáticas...
Coisas feitas de corações de pedra, de cores vivas escarradas no chão da ignomínia dos homens, lá onde não encontras o paraíso...
Rebusca e busca e encontra o mesmo, nada...
Falar de coisas alegres, de sorrisos e beijos de amor, falar das mãos dadas na berma da praia, falar do brilho no olhar de quem acredita, falar de ilusões, falar da espera eterna, falar em fé, falar...
Para quê fingir?
Lá na caverna, lá na toca, lá na cave a esperança tremeluz tal vela que pouco ilumina e o individuo não se agacha, não!!!
Sai da toca e ao clarão da noite de néon atira sarcástico e meio demente a pergunta lapidar:
-Podes me indicar oh noite interminável, como fazer para só vislumbrar um pouco desse tal de paraíso?
Obviamente que a noite não lhe responde mas mesmo assim aguça o ouvido, não vá a noite sussurrar e ele não ouvir...