domingo, 15 de novembro de 2020

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terça-feira, 19 de maio de 2020

Blues, play the blues!






                                                                 The Cotton Pickers, 1864 by Winslow Homer



Os blues são o plasma, o sentimento da seiva,
são o sopro dos buzios ao vento nas rochas,
na maré baixa
São dedilhados harpejos,
soam a sumarentos pomos
do canho maduro, 
embriagam, 
amolecem na cadencia do lamento
a paisagem,
prenhe de justiça, 
despovoada de gente feliz, 
sim, de gente  sedenta de amor 











Prenhe de almas que fecundam, 
o canto sofrido nos algodoais por colher
ao por do sol ensanguentado de oiro, 
cobertos de farrapos, os olhares esbugalhados, 
o pé bate e mantém o compasso na poeira do chão
massacrado pelo labor forçado,
o compasso é gemido até à raiz dos calos das mãos
que pedem perdão,
pelos pecadores que nunca pecaram e pelos outros












Os blues no escuro sob o azul do silencio da noite,
das chagas nas costas e da fome nos estomagos,
evocam os espíritos na forma mais subtil e crua,
acordam as torrentes esquecidas na seca prolongada
do esquecimento e os lamentos do escravo,
ouvem-se,
metamorfoseados na beleza de guitarras
a gemer,
ferem o belo cheio de emoções sem nomes, 
impalpáveis acordes da dor cicatrizada,
na cama com séculos nos lábios mordidos de raiva,
nas quentes lágrimas bentas 












Cristos fomos tantos! Cristos somos ainda tantos!













Os blues das planícies brancas da flor que te não vestirá, 
do acirro no faro dos cães enraivecidos de propósito
As mulheres abrem os olhos no rosto opaco, seco
e cantam numa só voz o choro das mães, 
o choro dos filhos marcados pelas chibatas
No solo longo das cordas de aço do violão,
no embalo do vento da madrugada,
pendurados nas forcas sob o crepusculo flutuante
das labaredas nas cruzes do ódio, os enforcados oscilam
e os blues ouvem-se na raiz das arvores, 
nas pedras no fundo do riacho, nos corações mais puros
Os blues são orações aos deuses perdidos, 
aos deuses que nos esqueceram

  











segunda-feira, 23 de março de 2020

Gaia cansou-se



















Gaia cansada de ser violada desde sempre
pela sua criação mais imperfeita, o homem,
dorida e paciente lambe as velhas chagas
e as feridas frescas, abertas e ensanguentadas 

Gaia que surgiu do Caos e sonhou a sua obra perfeita, 

constata agora que afinal errou, que criou a sua morte
e o tempo de espera para que ela se redimisse 
e alterasse o rumo da sua destruição, esgotou-se 








Século após século o homem decepou os seus braços, 
arrancou de dentro dela os seus órgãos, os seus ossos,
ávido vampiro sugou a sua seiva, envenenou o ar 
e cruel, plastificou as espécies do seu elemento líquido

Bêbado de luxuria e para alimentar a sua vaidade, 
fez mil buracos no seu corpo, na busca de óleo e pedras,
depois intoxicou o ar e queimou os seus pulmões 
que sufocados, derreteram os glaciares do seu equilíbrio, 
Gaia ficou moribunda, muito debilitada, mas lúcida 











e para sobreviver, ferida e atraiçoada pela sua obra
Gaia ergueu-se e sofrida desferiu o golpe,
tinha de parar a loucura da sua criação,
decidida soltou o veneno, invisível e letal,
que percorre agora o céu, a terra e os mares 
Lavada em lágrimas assiste à agonia da sua criação, 
que surpresa e inconsequente, estrebucha e culpa o acaso,
não quer perceber a real causa, nega-se a aceitar
que o mal é a sua ação destrutiva, tenebrosa












sábado, 15 de fevereiro de 2020

O silêncio e Van Morrison







                                                            O segredo duplo, René Magritte - 1927



















Se me perguntarem se eu quero ir,

direi que sim, eu quero ir

mas, perguntar-me-ão depois,

queres ir afinal para onde?

Direi que preciso de ir para qualquer lugar,

que sinto que não estou em lugar algum

Direi que pairar não é estar, que estar silêncio

Se me perguntarem se eu quero ir,

direi que é a urgência maior

Não estar aqui e mesmo estando

saber que não existe para onde ir












Esse lugar que buscas, está dentro de ti,

não é possível fazer dele um lugar para ir

Não se fica nele, ficar nele é continuar

a querer ir, a querer encontrar

Passar por ele, conviver com ele

para não sofrer, continuar a querer ir

Estranho afã, o querer ir

Pulsão líquida que se evapora

e de novo se faz líquida, inquieta

Querer ir afinal para onde?



quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Pertencer ao não espaço









                                                 A ponte de Heráclito - René Magritte, 1935






















Não pertenço a lado nenhum,
não pertenço lá, não pertenço cá
Nasci lá, cresci lá, no tempo em que
o que era lá, era aqui também
Lá era uma parte daqui,
mas não era aqui,
era uma mistura do que era lá
com o que chegava daqui
No fim da mistura, lá, sobrou só o lá
e eu não sou só de lá,
eu não sinto só o lá,
então vim para aqui, onde nunca houve mistura
onde falta o lá, aqui, só está o aqui
Também não sinto o aqui,
nunca pertenci só aqui, também sou de lá
Será que sou sem lugar?
Será que alguém pertence a algum lugar
ou é tudo uma questão da argila de que somos feitos?
Será que temos uma ideia errada do que é ser?
Ser é o quê afinal?












Nasci lá sob o regime daqui,
cresci e fiz-me homem,
o regime acabou, lá e aqui
A realidade lá, transformou-se numa coisa,
que não tem nada a ver com o que fui,
nem com o que sou
Cansei-me e vim ver o outro lado,
o aqui, onde tudo começou,
e o aqui, também não tem nada a ver comigo,
é só o aqui, não tem nada de lá, nunca teve
Quando éramos lá e aqui,
inseridos numa realidade diferente,
éramos uma mistura e nela fiz-me este que sou,
diferente dos de lá e dos de aqui
Hoje nem sou lá nem sou aqui, sou o quê então?





sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Letras dispersas








                                                                                                                   Simon Adjiashvili 1992 

















A vida inteira perseguimos simples quimeras,
as borboletas esquivam-se e a rede jogada enche-se de ar,
o garoto não desiste corre de rede alçada,
a borboleta dança suave num colorido elegante,
esvoaça por entre o chilrear do xirico e o verde da folhagem
some  deixando o poema inacabado










Letras cristalizadas em palavras doces,
como o algodão que humedece a semente
oferecendo-lhe o sonho da vida
que germina no pulsar da seiva a flor que sente












As palavras ditas a palavra lavrada não diz,
grava sim os recantos indizíveis
que só os olhos conjugam, 
nos arabescos entornados da alma
o solitário ato de ler o que não se pode dizer,
que nunca se poderá segurar,
que se esvairá como nuvens por entre os dedos,
caindo no alvoroço feito de silêncios
 das letras quando se beijam





quinta-feira, 24 de outubro de 2019

À flor da pele





                                     http://www.maryckennedy.com/about



                                                                















Os dados misturam-se no agito das pulsões, nos sonhos
nas mãos como num vaso chocam uns contra os outros,
atirados com emoção soam a oco sobre a mesa, 
rolam e gravam num desenho irrepetível o acaso

















Ah! As palavras sacudidas na concha das mãos não são jogadas,
caminham pelos dedos, 
uma, depois outra, todas, aninham-se no branco da mortalha,
sobre a mesa perfazem o poema,
não tem nome nem morada, 
como se fora uma tatuagem das musas, 
em cores à flor da pele