quinta-feira, 24 de outubro de 2019

À flor da pele





                                     http://www.maryckennedy.com/about



                                                                















Os dados misturam-se no agito das pulsões, nos sonhos
nas mãos como num vaso chocam uns contra os outros,
atirados com emoção soam a oco sobre a mesa, 
rolam e gravam num desenho irrepetível o acaso

















Ah! As palavras sacudidas na concha das mãos não são jogadas,
caminham pelos dedos, 
uma, depois outra, todas, aninham-se no branco da mortalha,
sobre a mesa perfazem o poema,
não tem nome nem morada, 
como se fora uma tatuagem das musas, 
em cores à flor da pele


















quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Os livros não têm caras





                                                                                 The Passion of Creation by Leonid Pasternak






Os livros, o mundo interior de alguém,
pouco importa de onde brota esse rio de palavras,
não carece
Os livros são recipientes surreais e arrumam,
a dança e o sol, a história,
o gesto e pensamentos em voz alta








Os livros escondem mostrando,
a angústia e o anseio na forma, o delírio do autor,
as lágrimas silenciosas, 
choradas vezes sem conta, repetidas 
no papel manchado, rasuradas,
perdidas no mundo interior 
sob o olhar crítico das musas








Os livros e quem os escreve não têm nada a ver,
como a chuva quando cai e é só a chuva que cai,
como o poema de regozijo e esperança,  
abandonado na mesa do suicida,
não lhe pertence mais, não é mais quem o escreveu
Ouvir falar aquele que escreveu nada acrescenta,
altera sim a viagem interior de quem o leu,
humaniza o que antes era transcendente








Os livros dos que permaneceram no limbo da morte
serão sempre o livro e o autor num só, eternos
                 Os livros são intocáveis e os autores vivos não,
a obra e o autor serão sempre desconhecidos entre si
não vale a pena procurar neles a explicação
O poema é dono e senhor de si próprio,
não tem corpo que o sustenha,
precisa apenas de um feixe de luz para se dizer














sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Outono com Ella e Louis






                                                                                         pintura de Leonid Afremov














Outono
uma folha amarelada tomba no ombro
resvala para o chão
um tapete de frutos podres
folhas e o cheiro da terra

O sol sorri ainda de peito alçado
o calor finge que ainda não se recolheu
no coração que bate feito savana
a planície vibra e irradia 







No Outono
o sol vermelho tinge o pensamento
o aceno ao sul e às monções é instintivo
Parto o cálice da fantasia e inspiro o cair da tarde
com amor e gáudio
Outono
a noite nítida erigirá altares e cantaremos
à neblina e aos nevoeiros
Afinal não é a beleza a mais perfeita invenção dos olhos da alma?








Outono
quando as luzes se acendem
como numa paleta de cores
misturam-se à luz do dia
encenam então oscilações laranja pálido a desbotar
e nós
poderemos dançar a queda das folhas ou encurvar os ombros e continuar...







Outono
Pássaros há que solfejam as rimas do acasalamento
ninhos mais quentes, tempos de menos comer
Alegremo-nos
tem pássaros que fogem do frio do norte
o canto noturno do rouxinol
no silêncio perfeito da noite
a beleza do canto
desdiz o mito
do calor da savana mais a sul
Outono






terça-feira, 15 de outubro de 2019

Eleições mesmo?







                                                                            pintura de Pedro Mourana













  Partem para elas como para uma corrida
sabemos que será tudo menos tal
Gastam a energia e o pouco dinheiro
fingindo que são sérios e dançamos todos
comemos e o carnaval é longo e oco
Como uma onda revolta as pessoas fluem
de lá para cá e de cá para lá, aos gritos,
excitados como as crianças quando no circo
 os palhaços e os malabaristas os levam ao êxtase
Aqui o êxtase é feito de conspirações, promessas inverosímeis
as velhas trapaças com marionetes ainda funcionam
e o povo exulta, corre pelo areal, vai à loucura!












Do mais lerdo ao mais iluminado parece que todos
se prontificaram a assistir ao espetáculo sem guião,
o show de improviso onde rabiscos são traçados
neste bafiento esboço mal feito,
Com pés de barro eles querem ser endeusados, nus, vocês acreditam?
Tudo que começa mal normalmente acaba mal
ou então mal continuará até ao fim dos dias
À forma como temos sido tratados desde o inicio, 
juntemos como num bolo o fermento destes últimos dias
feito de raiva, ódio, egoísmo e brutalidade
e fiquemos à espera que ele faça crescer a justiça
Esperarão em vão, como foi possível acreditarem?
Santa ingenuidade ou hipocrisia?









Não, não, os próximos dias serão amargos,
quero eu que no fim, quando tudo tiver terminado,
que o caminho seja outro que não este tão sofrido
Que a luz rompa definitivamente os corações endurecidos
ou que nós rompamos com os corações endurecidos
e consigamos para nós o trato a que temos direito
Poderemos então olharmo-nos ao espelho e sorrir
sem vergonha e com a dignidade conquistada
com a coragem que se adquire quando a injustiça,
a subjugação e a mortal indignação nos são infligidas durante anos
Não vai ser um parto fácil não, mas a criança vai nascer!
Sonhar é só o que me sobra, mesmo
sem saber o que será depois, sonho o fim da infâmia!









terça-feira, 8 de outubro de 2019

O cometa d'oiro



















Palavras que sorriem comigo 

 dizem o amor e brilham
nelas estrelas cadentes nascem 
 safiras tremeluzem num encanto musical  
 dedilham arabescos filigranas de oiro















O amor em palavras mil vezes dito e desdito
quando sentido por dentro do poema chora sorrindo
levanta as mãos aos céus onde no firmamento cisca
numa estrela o momento
A palavra amor e o amor se entrelaçaram são um só
 o abraço também acontece nos corações
que batem em uníssono graves
na pulsão do sangue nos sentidos













Amor num mar sereno de marés vivas
mãos dadas telepáticas a palavra calada
sem promessas nem juras
ficam os olhos da alma no céu o suspiro mais profundo
no beijo que cintila e adoça o mel
O cometa risca a ardósia da noite em oiro
gira flamejante vertiginoso
iça o amor e espreita
embevecido a eternidade