Boris Vian faz parte dos autores que mais me marcaram, li os seus livros há muitos anos mas permanece em mim a magia e o encanto que senti nas viagens surrealistas em que ele me transportou...
Os livros mais marcantes são sem dúvida "O arranca corações " e " A espuma dos dias ", aqui ficam alguns excertos do A espuma dos dias...
"O casamento As vagonetas encontravam-se alinhadas à entrada da igreja. Colin e Alise instalaram-se na primeira e partiram imediatamente. Foram dar a um corredor escuro que cheirava a religião. A vagoneta deslizava nos carris com ruído de trovoada e a música ressoava com uma força enorme. (…)"
"Desabotoou o colarinho. Alise reuniu forças e com um gesto resoluto espetou o arranca-corações no peito de Partre. Ficou a olhar para ela. Morria muito depressa mas fazia um último olhar de espanto ao verificar que o seu coração tinha a forma de um tetraedro. Alise ficou muito pálida. Jean-Sol já estava morto, e o chá arrefecia. Agarrou no manuscrito da Enciclopédia e rasgou-o. Um dos criados veio limpar o sangue e todas as porcarias que a caneta tinha feito na pequena mesa rectangular. Alise pagou, abriu os dois braços do arranca-corações e o coração de Partre caiu em cima da mesa; voltou a fechar o instrumento brilhante, meteu-o na carteira e saiu, levando na mão a caixa de fósforos que Partre trazia no bolso. (…)"
- Foi o Nicolas quem teve a ideia - retorquiu Colin. - Há uma enguia - ou antes, havia - que todos os dias vinha ter ao lavatório dele pelo cano da água fria. Punha a cabeça de fora e esvaziava o tubo de pasta dentífrica, fazendo pressão com os dentes. Nicolas só usa pasta americana, de ananás. Isso deve tê-la tentado.
- Como é que ele a apanhou? - perguntou Chick.
- Pôs um ananás inteiro no lugar do tubo. Quando engolia a pasta conseguia deglutir e depois recolher a cabeça, mas com o ananás, quanto mais ela puxava, mais os dentes se enterravam no ananás. (…)"
" — De facto não me interessa muito — disse o gato.
— Fazes mal — respondeu a ratinha. — Ainda sou nova e até há pouco bem alimentada.
— Também eu ando bem alimentado — disse o gato — e não sinto nenhuma vontade de me suicidar. Estás pois a ver por que razão acho isso anormal.
— É porque não viste — acrescentou a ratinha.
— O que é que isso tem? — perguntou o gato.
Não tinha grande necessidade de sabê-lo. Havia calor e os seus pêlos revelavam a maior elasticidade.
— Fica à beira da água — disse a ratinha — espera a hora, anda pela prancha e pára ao meio. Vê qualquer coisa.
— Não pode ver grande coisa — respondeu o gato. — Talvez um nenúfar.
— Sim — disse a ratinha, — Espera que ele suba para o matar.
— É idiota. Não tem qualquer interesse.
— Depois de passar a hora — continuou a ratinha — volta à margem e olha para a fotografia.
— Nunca come? — perguntou o gato.
— Nunca — disse a ratinha. — Está a ficar muito fraco e eu não posso suportar uma coisa dessas. Um destes dias vai dar um passo em falso, quando passar por cima daquela grande prancha.
— E que mal isso te faz? perguntou o gato. — Sentir-se-á infeliz, por acaso?
— Não se sente infeliz — respondeu a ratinha —, sofre. É isso que eu não posso suportar. E depois há-de cair na água, debruça-se de mais.
— Sendo assim — disse o gato —, quero prestar-te o serviço, mas não sei por que razão digo «sendo assim», uma vez que não percebo nada.
— És formidável — disse a ratinha.
— Mete a cabeça na minha boca e espera.
— Vai demorar muito tempo?
— O tempo de alguém me pisar o rabo — respondeu o gato; tenho de ter reflexos rápidos. Mas vou deixá-lo de fora, não tenhas medo.
A ratinha afastou as mandíbulas do gato e enfiou a cabeça entre os dentes agudos. Retirou-a logo a seguir.
— Diz-me cá — perguntou —, comeste tubarão esta manhã?
— Ouve — disse o gato —, se não te agradar podes pôr-te a mexer. Esses truques não me impressionam. Desenrasca-te sozinha.
Parecia aborrecido.
— Não te zangues — pediu a ratinha.
Fechou os olhinhos pretos e pôs a cabeça em posição. Com precaução, o gato encostou os caninos pontiagudos ao pescoço cinzento e delicado. Os bigodes pretos da ratinha misturavam-se aos seus. Desenrolou a cauda felpuda e deixou-a estendida no passeio.
Onze rapariguinhas cegas do Orfanato Júlio, o Apostólico, aproximavam-se a cantar. (…)"
Boris Vian
Boris Vian