segunda-feira, 23 de março de 2020

Gaia cansou-se



















Gaia cansada de ser violada desde sempre
pela sua criação mais imperfeita, o homem,
dorida e paciente lambe as velhas chagas
e as feridas frescas, abertas e ensanguentadas 

Gaia que surgiu do Caos e sonhou a sua obra perfeita, 

constata agora que afinal errou, que criou a sua morte
e o tempo de espera para que ela se redimisse 
e alterasse o rumo da sua destruição, esgotou-se 








Século após século o homem decepou os seus braços, 
arrancou de dentro dela os seus órgãos, os seus ossos,
ávido vampiro sugou a sua seiva, envenenou o ar 
e cruel, plastificou as espécies do seu elemento líquido

Bêbado de luxuria e para alimentar a sua vaidade, 
fez mil buracos no seu corpo, na busca de óleo e pedras,
depois intoxicou o ar e queimou os seus pulmões 
que sufocados, derreteram os glaciares do seu equilíbrio, 
Gaia ficou moribunda, muito debilitada, mas lúcida 











e para sobreviver, ferida e atraiçoada pela sua obra
Gaia ergueu-se e sofrida desferiu o golpe,
tinha de parar a loucura da sua criação,
decidida soltou o veneno, invisível e letal,
que percorre agora o céu, a terra e os mares 
Lavada em lágrimas assiste à agonia da sua criação, 
que surpresa e inconsequente, estrebucha e culpa o acaso,
não quer perceber a real causa, nega-se a aceitar
que o mal é a sua ação destrutiva, tenebrosa












sábado, 15 de fevereiro de 2020

O silêncio e Van Morrison







                                                            O segredo duplo, René Magritte - 1927



















Se me perguntarem se eu quero ir,

direi que sim, eu quero ir

mas, perguntar-me-ão depois,

queres ir afinal para onde?

Direi que preciso de ir para qualquer lugar,

que sinto que não estou em lugar algum

Direi que pairar não é estar, que estar silêncio

Se me perguntarem se eu quero ir,

direi que é a urgência maior

Não estar aqui e mesmo estando

saber que não existe para onde ir












Esse lugar que buscas, está dentro de ti,

não é possível fazer dele um lugar para ir

Não se fica nele, ficar nele é continuar

a querer ir, a querer encontrar

Passar por ele, conviver com ele

para não sofrer, continuar a querer ir

Estranho afã, o querer ir

Pulsão líquida que se evapora

e de novo se faz líquida, inquieta

Querer ir afinal para onde?



quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Pertencer ao não espaço









                                                 A ponte de Heráclito - René Magritte, 1935






















Não pertenço a lado nenhum,
não pertenço lá, não pertenço cá
Nasci lá, cresci lá, no tempo em que
o que era lá, era aqui também
Lá era uma parte daqui,
mas não era aqui,
era uma mistura do que era lá
com o que chegava daqui
No fim da mistura, lá, sobrou só o lá
e eu não sou só de lá,
eu não sinto só o lá,
então vim para aqui, onde nunca houve mistura
onde falta o lá, aqui, só está o aqui
Também não sinto o aqui,
nunca pertenci só aqui, também sou de lá
Será que sou sem lugar?
Será que alguém pertence a algum lugar
ou é tudo uma questão da argila de que somos feitos?
Será que temos uma ideia errada do que é ser?
Ser é o quê afinal?












Nasci lá sob o regime daqui,
cresci e fiz-me homem,
o regime acabou, lá e aqui
A realidade lá, transformou-se numa coisa,
que não tem nada a ver com o que fui,
nem com o que sou
Cansei-me e vim ver o outro lado,
o aqui, onde tudo começou,
e o aqui, também não tem nada a ver comigo,
é só o aqui, não tem nada de lá, nunca teve
Quando éramos lá e aqui,
inseridos numa realidade diferente,
éramos uma mistura e nela fiz-me este que sou,
diferente dos de lá e dos de aqui
Hoje nem sou lá nem sou aqui, sou o quê então?





sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Letras dispersas








                                                                                                                   Simon Adjiashvili 1992 

















A vida inteira perseguimos simples quimeras,
as borboletas esquivam-se e a rede jogada enche-se de ar,
o garoto não desiste corre de rede alçada,
a borboleta dança suave num colorido elegante,
esvoaça por entre o chilrear do xirico e o verde da folhagem
some  deixando o poema inacabado










Letras cristalizadas em palavras doces,
como o algodão que humedece a semente
oferecendo-lhe o sonho da vida
que germina no pulsar da seiva a flor que sente












As palavras ditas a palavra lavrada não diz,
grava sim os recantos indizíveis
que só os olhos conjugam, 
nos arabescos entornados da alma
o solitário ato de ler o que não se pode dizer,
que nunca se poderá segurar,
que se esvairá como nuvens por entre os dedos,
caindo no alvoroço feito de silêncios
 das letras quando se beijam





quinta-feira, 24 de outubro de 2019

À flor da pele





                                     http://www.maryckennedy.com/about



                                                                















Os dados misturam-se no agito das pulsões, nos sonhos
nas mãos como num vaso chocam uns contra os outros,
atirados com emoção soam a oco sobre a mesa, 
rolam e gravam num desenho irrepetível o acaso

















Ah! As palavras sacudidas na concha das mãos não são jogadas,
caminham pelos dedos, 
uma, depois outra, todas, aninham-se no branco da mortalha,
sobre a mesa perfazem o poema,
não tem nome nem morada, 
como se fora uma tatuagem das musas, 
em cores à flor da pele


















quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Os livros não têm caras





                                                                                 The Passion of Creation by Leonid Pasternak






Os livros, o mundo interior de alguém,
pouco importa de onde brota esse rio de palavras,
não carece
Os livros são recipientes surreais e arrumam,
a dança e o sol, a história,
o gesto e pensamentos em voz alta








Os livros escondem mostrando,
a angústia e o anseio na forma, o delírio do autor,
as lágrimas silenciosas, 
choradas vezes sem conta, repetidas 
no papel manchado, rasuradas,
perdidas no mundo interior 
sob o olhar crítico das musas








Os livros e quem os escreve não têm nada a ver,
como a chuva quando cai e é só a chuva que cai,
como o poema de regozijo e esperança,  
abandonado na mesa do suicida,
não lhe pertence mais, não é mais quem o escreveu
Ouvir falar aquele que escreveu nada acrescenta,
altera sim a viagem interior de quem o leu,
humaniza o que antes era transcendente








Os livros dos que permaneceram no limbo da morte
serão sempre o livro e o autor num só, eternos
                 Os livros são intocáveis e os autores vivos não,
a obra e o autor serão sempre desconhecidos entre si
não vale a pena procurar neles a explicação
O poema é dono e senhor de si próprio,
não tem corpo que o sustenha,
precisa apenas de um feixe de luz para se dizer














sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Outono com Ella e Louis






                                                                                         pintura de Leonid Afremov














Outono
uma folha amarelada tomba no ombro
resvala para o chão
um tapete de frutos podres
folhas e o cheiro da terra

O sol sorri ainda de peito alçado
o calor finge que ainda não se recolheu
no coração que bate feito savana
a planície vibra e irradia 







No Outono
o sol vermelho tinge o pensamento
o aceno ao sul e às monções é instintivo
Parto o cálice da fantasia e inspiro o cair da tarde
com amor e gáudio
Outono
a noite nítida erigirá altares e cantaremos
à neblina e aos nevoeiros
Afinal não é a beleza a mais perfeita invenção dos olhos da alma?








Outono
quando as luzes se acendem
como numa paleta de cores
misturam-se à luz do dia
encenam então oscilações laranja pálido a desbotar
e nós
poderemos dançar a queda das folhas ou encurvar os ombros e continuar...







Outono
Pássaros há que solfejam as rimas do acasalamento
ninhos mais quentes, tempos de menos comer
Alegremo-nos
tem pássaros que fogem do frio do norte
o canto noturno do rouxinol
no silêncio perfeito da noite
a beleza do canto
desdiz o mito
do calor da savana mais a sul
Outono






terça-feira, 15 de outubro de 2019

Eleições mesmo?







                                                                            pintura de Pedro Mourana













  Partem para elas como para uma corrida
sabemos que será tudo menos tal
Gastam a energia e o pouco dinheiro
fingindo que são sérios e dançamos todos
comemos e o carnaval é longo e oco
Como uma onda revolta as pessoas fluem
de lá para cá e de cá para lá, aos gritos,
excitados como as crianças quando no circo
 os palhaços e os malabaristas os levam ao êxtase
Aqui o êxtase é feito de conspirações, promessas inverosímeis
as velhas trapaças com marionetes ainda funcionam
e o povo exulta, corre pelo areal, vai à loucura!












Do mais lerdo ao mais iluminado parece que todos
se prontificaram a assistir ao espetáculo sem guião,
o show de improviso onde rabiscos são traçados
neste bafiento esboço mal feito,
Com pés de barro eles querem ser endeusados, nus, vocês acreditam?
Tudo que começa mal normalmente acaba mal
ou então mal continuará até ao fim dos dias
À forma como temos sido tratados desde o inicio, 
juntemos como num bolo o fermento destes últimos dias
feito de raiva, ódio, egoísmo e brutalidade
e fiquemos à espera que ele faça crescer a justiça
Esperarão em vão, como foi possível acreditarem?
Santa ingenuidade ou hipocrisia?









Não, não, os próximos dias serão amargos,
quero eu que no fim, quando tudo tiver terminado,
que o caminho seja outro que não este tão sofrido
Que a luz rompa definitivamente os corações endurecidos
ou que nós rompamos com os corações endurecidos
e consigamos para nós o trato a que temos direito
Poderemos então olharmo-nos ao espelho e sorrir
sem vergonha e com a dignidade conquistada
com a coragem que se adquire quando a injustiça,
a subjugação e a mortal indignação nos são infligidas durante anos
Não vai ser um parto fácil não, mas a criança vai nascer!
Sonhar é só o que me sobra, mesmo
sem saber o que será depois, sonho o fim da infâmia!









terça-feira, 8 de outubro de 2019

O cometa d'oiro



















Palavras que sorriem comigo 

 dizem o amor e brilham
nelas estrelas cadentes nascem 
 safiras tremeluzem num encanto musical  
 dedilham arabescos filigranas de oiro















O amor em palavras mil vezes dito e desdito
quando sentido por dentro do poema chora sorrindo
levanta as mãos aos céus onde no firmamento cisca
numa estrela o momento
A palavra amor e o amor se entrelaçaram são um só
 o abraço também acontece nos corações
que batem em uníssono graves
na pulsão do sangue nos sentidos













Amor num mar sereno de marés vivas
mãos dadas telepáticas a palavra calada
sem promessas nem juras
ficam os olhos da alma no céu o suspiro mais profundo
no beijo que cintila e adoça o mel
O cometa risca a ardósia da noite em oiro
gira flamejante vertiginoso
iça o amor e espreita
embevecido a eternidade