A música e as palavras fazem parte de mim.
Quero ouvir, dividir e respirar música...
e as palavras que dizem, quero-as como pinceladas alegres ou amargas, luminosas ou escuras, quero-as verdadeiras...
The Cotton Pickers, 1864 by Winslow Homer Os blues são o plasma, o sentimento da seiva, são o sopro dos buzios ao vento nas rochas, na maré baixa São dedilhados harpejos, soam a sumarentos pomos do canho maduro, embriagam, amolecem na cadencia do lamento a paisagem, prenhe de justiça, despovoada de gente feliz, sim, de gente sedenta de amor
Prenhe de almas que fecundam, o canto sofrido nos algodoais por colher ao por do sol ensanguentado de oiro, cobertos de farrapos, os olhares esbugalhados, o pé bate e mantém o compasso na poeira do chão massacrado pelo labor forçado, o compasso é gemido até à raiz dos calos das mãos que pedem perdão, pelos pecadores que nunca pecaram e pelos outros
Os blues no escuro sob o azul do silencio da noite, das chagas nas costas e da fome nos estomagos, evocam os espíritos na forma mais subtil e crua, acordam as torrentes esquecidas na seca prolongada do esquecimento e os lamentos do escravo, ouvem-se, metamorfoseados na beleza de guitarras a gemer, ferem o belo cheio de emoções sem nomes, impalpáveis acordes da dor cicatrizada, na cama com séculos nos lábios mordidos de raiva, nas quentes lágrimas bentas
Cristos fomos tantos! Cristos somos ainda tantos!
Os blues das planícies brancas da flor que te não vestirá, do acirro no faro dos cães enraivecidos de propósito As mulheres abrem os olhos no rosto opaco, seco e cantam numa só voz o choro das mães, o choro dos filhos marcados pelas chibatas No solo longo das cordas de aço do violão, no embalo do vento da madrugada, pendurados nas forcas sob o crepusculo flutuante das labaredas nas cruzes do ódio, os enforcados oscilam e os blues ouvem-se na raiz das arvores, nas pedras no fundo do riacho, nos corações mais puros Os blues são orações aos deuses perdidos, aos deuses que nos esqueceram
Não pertenço a lado nenhum, não pertenço lá, não pertenço cá Nasci lá, cresci lá, no tempo em que o que era lá, era aqui também Lá era uma parte daqui, mas não era aqui, era uma mistura do que era lá com o que chegava daqui No fim da mistura, lá, sobrou só o lá e eu não sou só de lá, eu não sinto só o lá, então vim para aqui, onde nunca houve mistura onde falta o lá, aqui, só está o aqui Também não sinto o aqui, nunca pertenci só aqui, também sou de lá Será que sou sem lugar? Será que alguém pertence a algum lugar ou é tudo uma questão da argila de que somos feitos? Será que temos uma ideia errada do que é ser? Ser é o quê afinal?
Nasci lá sob o regime daqui, cresci e fiz-me homem, o regime acabou, lá e aqui A realidade lá, transformou-se numa coisa, que não tem nada a ver com o que fui, nem com o que sou Cansei-me e vim ver o outro lado, o aqui, onde tudo começou, e o aqui, também não tem nada a ver comigo, é só o aqui, não tem nada de lá, nunca teve Quando éramos lá e aqui, inseridos numa realidade diferente, éramos uma mistura e nela fiz-me este que sou, diferente dos de lá e dos de aqui Hoje nem sou lá nem sou aqui, sou o quê então?
A vida inteira perseguimos simples quimeras, as borboletas esquivam-se e a rede jogada enche-se de ar, o garoto não desiste corre de rede alçada, a borboleta dança suave num colorido elegante,
esvoaça por entre o chilrear do xirico e o verde da folhagem some deixando o poema inacabado
Letras cristalizadas em palavras doces, como o algodão que humedece a semente oferecendo-lhe o sonho da vida
que germina no pulsar da seiva a flor que sente
As palavras ditas a palavra lavrada não diz, grava sim os recantos indizíveis que só os olhos conjugam,
nos arabescos entornados da alma o solitário ato de ler o que não se pode dizer, que nunca se poderá segurar,
que se esvairá como nuvens por entre os dedos, caindo no alvoroço feito de silêncios